A escolha de Sofia e o Direito de Personalidade em tempos de Pandemia

Você já ouviu falar na escolha de “Sofia”? Parece que estamos  revivendo os campos de Auschwitz, quando uma prisioneira polonesa de nome Sofia,  teve que escolher qual filho (a menina ou o menino) deveria poupar da execução nazista.

A pandemia provocada pela COVID 19, especialmente na Europa,  trouxe  uma discussão sobre a  possibilidade dos  profissionais de saúde, através de protocolos específicos,  escolherem para qual  paciente será disponibilizado atendimento em razão da ausência de condições de acesso no sistema de saúde.

Porém, afora todas as questões polemicas que envolvem a matéria,  como saber se a escolha foi a correta, ou melhor,  como explicar  aos familiares daquele que não  foi escolhido, que a razão da opção se deu pela idade, ou talvez através de outros critérios, muitas vezes subjetivos e complexos?

No campo jurídico, o direito a vida, aqui tolhido, compõe uma das máximas do direito de personalidade, com caráter subjetivo, ou seja, oponíveis erga omnes (se aplicam a todos os homens e contra todos ). São aqueles direitos que a pessoa tem para defender o que é seu, como: a vida, a integridade, a liberdade, a sociabilidade, a honra, a privacidade, a autoria, a imagem e outros.

Neste contexto, se a todos deva ser garantido o direito a vida, como qualificar  ou justificar  aos que não tiveram essa opção? Estaríamos diante de uma nítida  afronta ao bem mais precioso do cidadão, qual seja, sua vida e por via de consequência a dignidade da pessoa humana?

Essa situação especifica é chamada de Medicina de Catástrofe, que, por exemplo na Espanha, já foi disposta pela Sociedade Espanhola de medicina intensiva, a saber:

Una pandemia global, como la del SRAS-COVID-19, puede abrumar la capacidad de las instalaciones ambulatorias, los departamentos de emergencias, los hospitales y los servicios de medicina intensiva (SMI). Impacta en los recursos disponibles, tanto a nivel de estructuras, de equipamientos y de profesionales, con graves consecuencias en los resultados de los pacientes, de sus familias, de los propios profesionales sanitarios y de la sociedad en general. Esta situación excepcional se debe manejar como las situaciones de “medicina de catástrofe”, aplicando una atención de crisis excepcional basada en la justicia distributiva y en la asignación adecuada de los recursos sanitarios.”[1]

O Estado passa a  fundamentar esse procedimento com a ideia de que o direito individual pode ser mitigado em prol  da coletividade, o que, após analise profunda, quer nos parecer não se enquadrar nessa situação, já que ao que tudo nos indica,  o direito a saúde e ao bem estar, não deveria fazer  acepção de pessoa e, por  via de consequência, não poderia  fazer distinção alguma,  seja pela de idade,  etnia, sexo, situação clinica,  dentre outros critérios.

Quer nos parecer que estamos diante da colisão de dois direitos distintos: o direito individual de personalidade e o direito coletivo, justificado  pelo Estado na reserva do possível(que significa que a  efetividade dos direitos sociais e a prestações materiais estaria sob a reserva da capacidade financeira do Estado). Ocorre que, salvaguardada opiniões contrarias,  o Estado não poderia argumentar reserva do possível e escassez do sistema de saúde quando estamos falando do bem mais precioso que o individuo possui e que sem ele, nenhum outro faz qualquer sentido ou mesmo subsistiria.

Voltando ao caso de Sofia, ela acabou por escolher deixar vivo o menino, por entender que este seria o mais forte, o que transportando para  nossa realidade, se é que deveria ter havido alguma escolha, de certo que, ela pode ter feito uma analise equivocada, ate porque, nunca mais encontrou seu filho, desconhecendo o que teria com ele ocorrido. Essa situação  posta pode certamente ocorrer  com os inúmeros pacientes portadores da Covid 19 que não  puderem contar com atendimento medico necessário e eficaz nessa situação, sendo a eles eivada qualquer chance de cura, sob uma justificativa subjetiva e financeira.

È claro que, não se trata de criar sensacionalismo aparente com essa questão demasiado difícil e dolorida  mas, tentar entender e analisar juridicamente  as inúmeras situações complexas  que serão abordadas a partir daqui e que, ainda não estão maduras suficientes para tecermos qualquer definição.

Mesmo sobre o fundamentado de força maior, essa argumentação do Estado, não conseguira impedir futuras ações judiciais em busca de respostas e reparações de danos causados as inúmeras famílias que possam perder seus entes nessa situação, sob o argumento, dentre muitos, da perda de uma chance, ou ainda, inúmeras ações judiciais com pedidos de atendimento e exercício do direito ao acesso a saúde, sem excluirmos  ainda a  discussão penal sobre a matéria.

Desta forma,  o principal desafio do Estado frente a essa dicotomia dos direitos individuais em detrimento aos direitos coletivos, ao meu ver, seria  formular estratégias políticas e sociais orquestradas com outros mecanismos e instrumentos de garantia democrática que aperfeiçoem os sistemas de saúde e de justiça com vistas à efetividade do direito à saúde,   uma vez que idade , ou qualquer outra distinção não  poderia ser fator de  exclusão sob nenhum aspecto, e enquanto isso não for possível, cabe a nós operadores do direito juntamente com a sociedade, utilizarmos de todos os mecanismos necessários para que a Governança trate a maquina  publica com ela efetivamente deve ser, “coisa do povo.

[1]https://www.spg.pt/wp-content/uploads/2020/04/SocESpCI_RECOMENDACIONES-%C3%89TICAS-PARA-LA-TOMA-DE-DECISIONES-EN-LA-SITUACI%C3%93N-EXCEPCIONAL-DE-CRISIS-POR-PANDEMIA-COVID-19-EN-LAS-UNIDADES-DE-CUIDADOS-INTENSIVOS.pdfc acesso em 10.04.2020

Texto por: Andrea de Souza Gonçalves

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