NOVO PETRÓLEO DO MUNDO E A FACE PERVERSA DO APROVEITAMENTO DA PANDEMIA!
Desde Janeiro 2011, por ocasião da realização do Fórum Econômico Mundial em Davos, oficialmente o mundo conheceu a expressão: “Novo Petróleo do Mundo” elevando os dados pessoais à condição de nova moeda do mundo digital, conforme inclusive dito pela comissária europeia do Tribunal Europeu de Luxemburgo, a Búlgara Meglena Kuneva.
De lá para cá, essa afirmação apenas tem contribuído para o aumento exponencial das questões ligadas a proteção dos dados pessoais, a ponto de em 2018, mais precisamente em Agosto, o Brasil publica a Lei 13.709, batizada de Lei Geral de Proteção de Dados, com sua classificação no rol das Garantias de Direitos Fundamentais, com vigência programa para Agosto de 2020, três meses após a publicação do Regulamento Geral da Proteção de Dados publicado pela União Europeia, batizado como GDPR(General Data Protection Regulation) que se deu em Maio de 2018.
É uníssono, ao analisarmos os dois textos que, o Brasil utilizou como base as diretrizes europeias com algumas alterações e, neste contexto, ficamos com a impressão de que, o país precisava de uma lei que trata-se da Proteção de Dados Pessoais e pudesse dar uma resposta a União Europeia, bem como, a outros países, tais como Japão e Argentina que já contam com referida legislação.
Neste contexto, a primeira pergunta que se pretende fazer é: Porque uma lei é publicada com vigência programada para dois anos após sua publicação, já que o país passava por pressões internacionais em razão de a matéria ser de precípua importância à manutenção de garantias mínimas ao individuo?
Para respondermos essa pergunta, se faz necessário voltarmos a 2018. Em Outubro de 2018, é eleito o novo Presidente da Republica, ou seja, dois meses após a publicação da referida Lei de Proteção de Dados eleição esta que ocorreu após o impecheament ocorrido em 2016 da então Presidenta Dilma Russef, deixando o pais com uma visão frágil.
As noticias da época revelavam que o Brasil havia passado da 26ª. posição para a 27ª. no ranking de maiores exportadores do mundo, segundo a Organização Mundial do Comercio, ficando atrás de países como Tailândia, Malásia e Vietnã.[1]
Ora, com projeção comercial menor e risco Brasil maior, não é demais afirmar que, a Lei Geral de Proteção de Dados vem para acalmar os ânimos e dar uma resposta quanto a conformidade em proteção de dados, principalmente porque, como integrante do Mercosul, o país estava em vias de integrar um acordo comercial histórico com a União Europeia, o que acabou por efetivamente ocorrer em 28 de Junho de 2019 em Bruxelas, após vinte anos de negociação. Para termos a noção da grandiosidade desse acordo, o Brasil aumentaria de 24% para 95% as exportações brasileiras livres de tarifas.[2]
A partir dai, se iniciou uma corrida, especialmente de empresas de grande porte para a adequação em proteção de dados, mesmo com a programação de vigência para Agosto de 2020, por obvio em função ao potencial lucrativo. Empresas que exploram a propriedade intelectual, por exemplo, constantes no referido acordo comercial, deveriam se adequar aos padrões internacionais de proteção de dados com relação a patente e garantia de não divulgação do que trata da proteção dos dados quanto aos testes clínicos exigidos para o lançamento de remédios e defensivos agrícolas[3]
E mais, restava claro que o objetivo desse acordo, afora submeter mais vantagens econômicas a todos os países pertencentes, seria melhorar as politicas de proteção de dados e de conformidade desses países, com a fundamentação de que essa proteção facilitaria o fluxo de dados no comercio. Isso culminou com a criação, em 8 de Julho de 2019, da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, através da Lei 13.853, órgão que funcionaria como de adequação e fiscalização da Lei de Proteção de Dados.[4]
Entramos em 2020, quando fomos abruptamente acometidos pelo Decreto Legislativo 06 de 20 de Março, [5] instaurando o estado de calamidade publica no país, com seus efeitos aplicados ate o dia 31 de Dezembro de 2020, em função da pandemia anunciada pela Organização Mundial de Saúde provocada pelo Covid 19, e com ele, vieram inúmeras interpelações com relação à possibilidade de prorrogação de vigência da LGPD, numa nefasta articulação desproporcional e desinformada da matéria.
Mas, ante a esse quadro, seria mesmo sustentado o anseio de alguns para essa prorrogação sob o argumento do colapso e calamidade pública ocasionada pelo Covid 19?
Neste contexto, sob o manto da prorrogação já autorizada pelo Senado no dia 03.04.2020 para vigência da LGPD para Janeiro de 2021, é editada a Medida Provisória 954[6] trazendo a possibilidade de compartilhamento de dados pessoais como: nome, telefone e endereço, pelas empresas de telefonia ao IBGE (instituto Brasileiro de Geografia Estatística) para a realização de pesquisa relacionada à pandemia, medida esta suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, através da decisão da ministra Rosa Weber, no dia 24.4.2020, já que, não houve por parte do executivo, esclarecimento sobre o texto, mesmo depois de instado a fazê-lo, especialmente sobre os critérios rígidos desta pesquisa.
Nesta esteira, inclusive como forma de entender essa suspensão, não é demais arrematar a lição que nos foi dada por Alexandre Sousa Pinheiro, em seu texto: “ A Covid -19 e a proteção de dados pessoais”, a respeito da total irregularidade desta Medida Provisória, a saber: “Existe, assim, uma regra de que os tratamentos de dados de saúde em tempos de exceção devem basear-se na legislação e regulamentação nela fundada, e não no consentimento…..2.1. Os tratamentos de dados pessoais em estado de emergência, que implicam necessariamente restrições a direitos fundamentais (máxime ao direito à proteção de dados pessoais, previsto no artigo 8.º da Carta Europeia de Direitos Fundamentais) devem obedecer, nomeadamente, ao princípio da proporcionalidade e ao respeito conteúdo essencial dos direitos afetados – artigo 52.º, n.º 1 da Carta Europeia de Direitos Fundamentais – acompanhado pelo artigo 9.º, n.º 2, alínea g) do RGPD.”[7]
Ato continuo, e não menos estarrecedor, no dia 29 de Abril de 2020 o Governo edita a Medida Provisória 959 [8] que trata da operacionalização do beneficio emergencial trazido na Medida Provisória 936, e como um “puxadinho”, trouxe também a prorrogação da vigência da LGPD para 03.05.2021, em completa contradição à própria natureza jurídica do texto a ela vinculativo.
É certo que, a Medida Provisória, somente tem razão de ser frente a um ato normativo excepcional e célere e, quando a situação for de relevância e urgência, o que não vislumbramos no presente caso, já que, conforme acima já dito, já existe um projeto de Lei julgado no Senado (11709/2020) versando sobre a matéria, e que fora recepcionado em caráter de urgência na Camara dos Deputados, bem como, estarmos falando de uma vigência programada para daqui 4 (quatro meses), ou seja, tempo suficiente para que o Congresso e o Presidente da Republica assim o definam.
Outra inconsistência da referida Medida Provisória é que matérias atinentes à cidadania estão excluídas da possibilidade de veiculação sobre seu manto, conforme artigo 62, paragrafo 1º., inciso I, da Constituição Federal de 1988, item “a” relativamente a temas atinentes a cidadania em seu sentido amplo e mais, numa interpretação mais restritiva, o próprio inciso IV, do mesmo dispositivo legal, traz a vedação de aplicação de Medidas Provisórias quando da existência de Projeto de Lei, já aprovados pelo Congresso Nacional, e pendente de sanção ou veto do Presidente da Republica, como é o caso.
Assim, quer nos parecer que, seja através de Projeto de Lei para prorrogação ou Medida Provisória, o país esta andando na contra mão dos fatos. Primeiro porque, resta nítido a necessária busca da conformidade, em todos os aspectos, especialmente relativa à proteção de dados, já que, sem essa adequação, estamos fadados ao surgimento de normas descaracterizadas de garantias mínimas do individuo. E segundo porque, com esse cenário, perderemos o time quanto à possibilidade de aumentarmos o capital estrangeiro e diminuirmos as taxas e impostos nas operações.
Inexiste, portanto, respeitadas opiniões contrarias, qualquer prejuízo à manutenção da vigência da LGPD neste cenário para Agosto de 2020, ao contrario, o que sua aplicabilidade poderia nos elevar, como nação, a patamares maiores no cenário mundial, com reflexões internas importantes, ainda que pudéssemos acolher a prorrogação somente das sanções na lei dispostas, haja vista a possibilidade de aplicação subsidiaria de outros dispositivos legais a matéria, como por exemplo, o Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, o Marco Civil da Internet, dentre outros diplomas.
É exatamente essa logica perversa e invertida do aproveitamento da pandemia que não podemos endossar. Usar a calamidade, trazida pela Covid 19 e justificar a pretensa “necessidade” de prorrogação da LGPD, nada mais é do que, interromper o desenvolvimento do homem e a elevação de suas garantias a patamares constitucionais, ceifando do individuo, aquilo que ele tem como bem mais precioso que é sua individualidade, como premissa máxima da dignidade da pessoa .
[1] https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/04/02/brasil-cai-para-para-27a-posicao-em-ranking-de-2018-de-maiores-exportadores-do-mundo.ghtml acesso em 24/04/2020
[2] https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2019-06/acordo-com-uniao-europeia-dinamizara-economia-brasileira-diz-araujo acesso em 24/04/2020
[3] https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td268 acesso em 24/04/2020
[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13853.htm acesso em 24.4.2020
[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm acesso em 24/04/2020
[6] http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv954.htm acesso em 24/04/2020
[7] https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/04/28/a-covid-19-e-a-protecao-de-dados-pessoais/ acesso em 30.04.2020.
[8] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv959.htm acesso em 30/04/2020.
Texto por: Andrea de Souza Gonçalves